segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Uma cave acima do solo


Foto de arquivo do Rossio inundado.

Os princípios elementares da “precaução” e da “responsabilidade” devem orientar primordialmente todas decisões públicas sobre atividades que fazem “uso de recursos comuns” ou que venham a ser objeto de utilização pública ou coletiva. Os princípios em causa ganham importância maior na avaliação de decisões, sempre que, e ainda que incertos, os seus resultados possam conduzir a prejuízo material, humano ou moralmente inaceitável, obrigando por conseguinte a ações para o evitar ou na sua impossibilidade para o diminuir.

A própria ação da proteção civil também se subordina a semelhantes princípios especiais: o “princípio da prevenção”, por força do qual “os riscos de acidente ou de catástrofe devem ser considerados de forma antecipada”, de modo a eliminar as próprias causas; e o “princípio da precaução”, de acordo com o qual se devem adotar medidas de diminuição do risco de acidente ou catástrofe inerente a cada atividade, associando a presunção de imputação de eventuais danos e responsabilidades à mera violação daquele “dever de cuidado”.

A aplicação do “princípio da precaução” ganhou nas últimas décadas um reconhecimento doutrinal internacional generalizado e começou a receber consagração mais frequente em instrumentos do Direito e do Urbanismo.
Não foi assim recente, nem por acaso, que no mundo em geral e em Portugal em particular, se fizeram aprovar leis para acautelar os riscos de várias naturezas, passando a Água a ter um relevante papel condicionante nas intervenções urbanísticas.

Em Portugal a Lei da Água (1) consagra, entre vários, o princípio da precaução e o da prevenção, e estabelece ainda várias medidas de proteção contra cheias e inundações. Destas medidas destacam-se três: 1- “constituem zonas inundáveis ou ameaçadas pelas cheias as áreas contíguas à margem dos cursos de água ou do mar que se estendam até à linha alcançada pela maior cheia com probabilidade de ocorrência num período de retorno de um século.” 2- “as zonas inundáveis ou ameaçadas pelas cheias devem ser objeto de classificação específica e de medidas especiais de prevenção e proteção, delimitando-se graficamente as áreas em que é proibida a edificação e aquelas em que a edificação é condicionada, para segurança de pessoas e bens”; 3- “na ausência da delimitação e classificação das zonas inundáveis ou ameaçadas por cheias, devem os instrumentos de planeamento territorial estabelecer as restrições necessárias para reduzir o risco e os efeitos das cheias, devendo estabelecer designadamente que as cotas dos pisos inferiores das edificações sejam superiores à cota local da máxima cheia conhecida.”

Na zona baixa da cidade de Aveiro, tal delimitação gráfica das zonas inundáveis é assegurada pelo Plano de Urbanização do Programa Polis em Aveiro (PUPolisAveiro) (2) o qual abrange o Rossio de Aveiro. Este impõe no seu regulamento que, todas as edificações propostas para estas áreas inundáveis tenham uma “cota de soleira igual ou superior à cota geodésica 2,4 m”. Tal imposição jurídica torna tecnicamente impossível construir legalmente qualquer cave na zona da Beira-mar e no Rossio, a menos que esta, com a muita imaginação arquitetónica, seja executada “acima do solo”!

Importa ainda sublinhar que as cheias não se erradicam por decreto, ou por falta dele, pelo que, como é evidente, qualquer revogação do PUPolisAveiro não elimina a condicionante natural e legal em causa, a menos que se avance para graves atropelos aos princípios legais e doutrinais referidos atrás, bem como ao já bem consolidado saber técnico-científico vigente!

Impunha-se assim, para efeitos de defesa da transparência na Administração Pública Local, que fossem publicamente apresentados os fundamentos jurídicos, técnicos e científicos das decisões que estiveram na base do Ajuste Direto da “Elaboração do Projeto de Execução Para a Requalificação do Largo do Rossio e Praça General Humberto Delgado, em Aveiro” pelo valor não desprezível de 384.979,00 € (3), dado ser sabido previamente não ser legal concretizar um dos seus maiores objetivos (nomeadamente a construção de um parque de estacionamento automóvel em cave), sabendo-se inclusivamente que tal objetivo pode vir a nunca observar tal qualidade, se os organismos tutelares forem zelosos nas suas obrigações técnicas, legais e científicas, e ainda na prossecução do interesse público.

Se a cautela e ponderação cuidada já se impunham por todos os motivos apontados, atualmente, com as recentes e irrefutáveis evidências científicas de agravamento destes riscos em função do aumento da Temperatura Média Global (SR5 - IPCC, 2018) (4), caves ou mesmo novas edificações em zonas historicamente inundáveis deveriam ser automaticamente e logicamente descartadas.

Segundo a conclusão de um estudo, publicado na PNAS (5), que tem por base a análise de 25 anos de dados de satélite, o valor da taxa anual de subida do nível das águas do mar – de cerca de três milímetros por ano – poderá vir a triplicar para mais de 10 milímetros por ano até 2100, podendo segundo a União Europeia ocorrer sérias complicações futuras nas cidades costeiras.


Capa da revista Time de junho de 2019.

Concluindo, e se ainda houver espaço e tempo para eufemismos, que se procure então tranquilizar de algum modo os aveirenses sobre os riscos inerentes a uma obra despesista, não prioritária e em nada consensual: importa assim elucidar-se publicamente sobre quais os meios a acionar em caso de inundação futura da cave de estacionamento - isto se esta vier ininteligivelmente a ser construída; quais as medidas de segurança garantidas pelos responsáveis técnicos e políticos da decisão, e qual a entidade a quem dirigir os pedidos de indemnização, pelos possíveis danos resultantes, de probabilidades nada desprezíveis.

Se, como aconteceu nas recentes décadas passadas (ver fotos de arquivo), o Rossio vier a ser novamente objeto de retorno de cheias (período retorno de 20 anos segundo a Agência Portuguesa do Ambiente) (6), estas agora inundarão muito além do piso térreo, e quiçá o elevado intelecto aveirense também venha a acordar encharcado…!


Foto de arquivo do Rossio inundado.
 
Referências:

Publicado no Diário de Aveiro de 17 de agosto de 2019.
(Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico)